O trabalho invisível da mulher na fixação da pensão alimentícia
Desde a conquista do voto feminino (1932) ou a criação do Dia Internacional da Mulher (1975), cada vez mais as mulheres ocupam seu espaço na sociedade. Tantas outras datas importantes marcam esse ciclo de evolução e de luta por direitos, como a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio, assim como a Portaria nº 27 do CNJ, que instituiu o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero (2021), cujo objetivo é auxiliar o Poder Judiciário a eliminar julgamentos repletos de preconceitos e desigualdades, permitindo a igualdade de gênero.
Apesar de todo o avanço, há um ponto sensível que começa a ser corrigido pelos Tribunais: a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher, que não por acaso foi tema de redação do Enem 2023. Em pesquisa recente (2022), o IBGE constatou que a mulher dedica 9,6 horas a mais do que o homem às tarefas do lar. Mesmo quando ambos têm uma ocupação, a dedicação feminina ainda é mais evidente e isso afeta o tempo e a rotina delas, inclusive a disponibilidade ao mercado de trabalho, à vida social e cultural.
A grande problemática sobressalta quando ocorre o fim da conjugalidade do casamento ou da união estável, com a existência de filhos e a consequente necessidade de pagamento de pensão alimentícia. Como fica a divisão entre os genitores quanto aos cuidados diários do(s) filho(s)?
Apesar de a igualdade de tratamento entre homens e mulheres ser uma garantia fundamental – assim como o dever parental dos genitores –, a realidade revela a vulnerabilidade ainda existente quanto aos cuidados com os filhos após o divórcio ou dissolução da união estável. A verdade é que existe uma visão deturpada de que tais tarefas sejam obrigações exclusivas da mãe, cabendo ao pai o mero papel de provedor, para quem a pensão é mais que suficiente frente às necessidades básicas dos filhos. Paga-se a pensão e a mulher tem o encargo dos cuidados diários, sem que isso tenha valoração.
É indiscutível que a mulher tem conquistado cada vez mais seu espaço no mercado de trabalho e, como consequência, contribuindo financeiramente para o sustento dos filhos. E esse espaço no mercado de trabalho exige que ela se faça substituir por uma escola, babá ou empregada doméstica, cujas despesas são parte indissociável no momento da fixação dos alimentos. Contudo, quando esse mesmo trabalho é desenvolvido pela própria mãe, ele não é valorizado e muito menos levado em consideração ao se fixarem os alimentos. É aqui que entra o Protocolo de Julgamento pela Perspectiva de Gênero e as recentes decisões sobre o trabalho invisível da mulher.
O Tribunal de Justiça do Paraná, no julgamento do agravo de instrumento 0013506-22.2023.8.16.0000, em 29/09/2023, com base no Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, majorou o valor dos alimentos provisórios, considerando – no cálculo da proporcionalidade dos alimentos – esse trabalho invisível da mulher: os encargos domésticos de cuidado diário com os filhos, de preparo dos alimentos, de correção de tarefas e de limpeza da casa, os quais, como todos sabemos, não é remunerado e quase nunca valorizado.
A decisão do TJPR é magnífica, pois reconhece a importância dessa dedicação feita pela mãe como um capital social, visando ao bem-estar e desenvolvimento dos filhos, promovendo a igualdade de gênero no que tange às responsabilidades parentais.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (processo 5001163-30.2023.8.24.0017) também enfrentou o tema, entendendo que a fixação de alimentos com a adoção do Protocolo fortalece o princípio da proporcionalidade, valorando o trabalho doméstico não remunerado, inclusive como forma de concretização da parentalidade responsável.
O Tribunal de Justiça de São Paulo igualmente encarou o tema na ação de alimentos 1018311-98.2023.8.26.0007, destacando que “historicamente, em nossa sociedade, atribui-se aos homens o trabalho produtivo e remunerado, enquanto que às mulheres é relevado o trabalho interno denominado ‘economia de cuidado’, geralmente desvalorizado. Referida condição deve ser observada nos julgamentos efetuados pelos magistrados do país e adotado por este juízo”.
Sem dúvida, se a responsabilidade por esse cuidado é integral da mãe – ou se, na proporção dessa divisão, a maior parte é dela –, então a valoração do cuidado na fixação dos alimentos coroa a igualdade de gênero.
Evidente que é necessária a análise de cada caso concreto, levando sempre em consideração que o dever de guarda e de cuidado dos menores é deferido para ambos os genitores. Logo, é preciso analisar se a teoria está em sintonia com a prática. Digo isso porque a lei estabelece duas modalidades de guarda: a unilateral e a compartilhada, sendo a última a regra. Assim, ambos os genitores, independentemente da natureza do vínculo (biológico, afetivo, adotivo), têm direitos e obrigações com o menor. Na teoria, com o rompimento da conjugalidade, os pais, em geral, concordam com a guarda compartilhada. Porém, na prática, as obrigações inseridas como trabalho doméstico de cuidado diário com os filhos geralmente são exercidas pela mãe, pois em que pese ter havido evolução da posição da mulher no mercado de trabalho, não se constata esse mesmo progresso quanto ao homem com os cuidados domésticos em relação aos filhos.
Portanto, a análise casuística e a adoção do Protocolo de Julgamento pela Perspectiva de Gênero, aliado ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, sem dúvida teremos uma decisão com maior efetividade e justiça no que diz respeito à valoração do trabalho da mulher quanto aos cuidados diários com os filhos.
Célia Cristina Martinho, sócia do Freitas, Martinho Advogados e Presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB Bauru/SP.